quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Vento 



O vento está mudando e com ele, o mundo.
As bruxas sentem a transformação no corpo e sabem que têm que partir e abandonar as aldeias nas quais viveram por alguns anos. Sabem que os conflitos e as perseguições estão chegando. Juntam seus trapos e sem anunciar, nem avisar, simplesmente vão, como sombras.  Pois o tempo do vento ruim entra na mente de cada pessoa, trazendo à tona as emoções mais escondidas. E por mais que se queira fazer de conta que nada mudou, o vento sopra dentro da alma e revira tudo, tudo o que não se pode mostrar, dizer ou desejar. É um incômodo tão grande que alguém deve ser responsabilizado. Então, as bruxas são punidas.
Foi a mais velha que percebeu primeiro. Discreta como sempre, tentou controlar a ira que foi tomando forma em seu corpo. Mas os indícios não deixavam dúvida: pequenas discussões, descuidos e erros, tensão na comunicação. Coisas insignificantes às quais não daríamos a menor importância passaram a ter um peso excepcional, a perturbar cada vez mais as pessoas. E como ela compreendia, decidiu se abrigar na floresta até que vento se acalmasse novamente, pois era da natureza o poder de fazer e desfazer, criar e destruir. O homem se julgava tão importante, mas não percebia que era muitas vezes apenas um joguete.

Na mata, em perfeita solidão, a velha deixava o vento rasgá-la. Tudo que era oculto se tornou aparente: os amores mal vividos, os afetos reprimidos, as palavras irrefletidas ou não pronunciadas, um mar de arrependimentos pelo que não havia feito e de culpa pelos erros cometidos. A dor foi tanta que ela deixou de querer viver. Abandonou-se, entregou-se e fez silêncio. Entrou no mundo sem tempo, sem horas, nem formas. Ao acordar, estava em paz. O vento ruim havia partido. Ela estava pronta e encaminhou-se para uma nova vida.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

ESCOLHAS

"Two roads diverged in a wood, and I—
I took the one less traveled by,
And that has made all the difference."

Robert Frost



Foi logo no primeiro dia que descobriu que não ia dar certo.
Há um mês acordava cedo demais, pegava o metrô lotado, chegava ao escritório com cara de anteontem e se sentia um número. Essa era a pior parte! Um número! Havia tantas iguais (como assim, iguais!!!) a ela.
Na sala comprida, mesas pequenas, sobre as quais repousavam telefone e monitor. Divisórias aumentavam a sensação de isolamento. Em minutos todos começariam a cacarejar o discurso aprendido do telemarketing! Haverá algo de mais odiável? Para fazer aquele trabalho seria preciso ser autenticamente desprovido de sonhos ou coagido a abandoná-los. Eram treinados para se tornarem robôs. Não. Não ia dar certo. Mesmo.
- Acho que nem vou mais. – declarou para si mesma em voz baixa, temendo secretamente o olhar de desaprovação e horror da mãe.  E talvez por esse mesmo motivo, resolveu sair, fingindo cumprir a rotina mecânica.
Uma vez na rua, a sensação de liberdade e transgressão correu pelo corpo. A vida era grande demais para ser passada em uma sala sem alma. A vida era preciosa demais para ser desperdiçada cumprindo o papel que não era de sua escolha. A vida era rica demais para não ser acalentada, amada e sorvida por cada poro.  Tinha que aproveitá-la à sua maneira. Sem concessões. Com riscos.
Despreocupada e confiante seguiu rumo a seus próprios sonhos.
                    



terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Mudanças



Sob a luz do pôr do sol as areias se tornavam douradas. Nada a fazer além de caminhar sobre elas com os pés descalços. A beleza momentânea da paisagem fazia contraste com meu estado de espírito sombrio. Por um instante, me senti uma atriz representando em um filme triste e observei a mim mesma. Por um instante, parei de me sentir mal. Por um instante, percebi que o mundo seguia adiante sem registrar minha decepção amorosa.

 Era o fim. O fim da aventura na qual eu havia mergulhado sem medida nem cuidado. Noites em claros, prazos de entrega desrespeitados, risadas altas e vestidos curtos. Oito meses de vida explícita e como sequela, vários contatos profissionais desfeitos. Rastros de uma relação intensa e insidiosa. O pessoal, o íntimo havia aberto as portas, saído do seu esconderijo e ido a todos os locais onde normalmente é proibido. Em oito meses eu havia mudado de status: de profissional respeitada à amadora irresponsável. O que anos de seriedade e compromisso tinham construído fora varrido por oito meses de comportamento irresponsável e adolescente. Problema: tenho 39 anos e contas a pagar. No momento, me desesperar apenas por amor seria um luxo ao qual não posso me entregar. Apesar da beleza romântica da praia, a realidade concreta de compromissos não cumpridos não podia ser ignorada. Talvez a maior frustração seja me ver novamente às voltas com a banalidade do cotidiano onde as emoções e a fantasia parecem não ter direito de existir. A visão do mar me acalmava, seu movimento contínuo anunciando em silencio que tudo muda, que nada é permanente e que é possível construir um outro caminho, uma outra vida. Fixei o olhar nas ondas esperando ficar impregnada pela possibilidade de resgate: entregar, confiar, aceitar. 

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Ser ou não ser...



Dia de chuva e de frio em Londres.
Encolhida em casa, pensava no que fazer da vida.
Havia perdido seu emprego, um emprego que odiava, mas que ainda assim garantia sua moradia e seus chocolates suíços, imprescindíveis para ela tanto quanto eram cigarros para outros.
O gato passou balançando o rabo, indiferente.
O que dizer para seu pai.. que teria que voltar para casa de novo... que tinha 26 anos e nenhuma competência especial e por isso não conseguia parar nos empregos...
Não. Na verdade, ela não podia mais continuar tentando. Era uma secretária medíocre e desorganizada. Detestava vigiar a agenda dos outros, atender telefone com voz comercial e vestir terninhos. Queria usar jeans e camisetas manchadas pelas tintas dos quadros que adorava pintar.
“Artistas não ganham dinheiro.”
A frase ressoou em sua cabeça como um mantra assustador.
“Gente frustrada fica doente.” – respondeu para si mesma, desafiadoramente.
Então. tomou duas decisões: nunca mais trabalhar em um escritório e ir ao British Museum, encontrar inspiração para seus novos quadros. Naquele momento, começava uma nova vida.