quinta-feira, 19 de junho de 2014

MEMÓRIAS DOS SENTIDOS



Cheiro de erva cidreira me lembra tardes em Águas de Lindoia. Sou automaticamente transportada para o hotel onde ficava com meus pais e que servia o melhor chá do mundo. Era saboroso, combinava com o ambiente, me fazia dormir o sono dos justos.

A luminosidade do amanhecer no inverno de São Paulo sempre me remete aos meses em que estudei em Londres. Eu saía de casa às 8 da manhã, mas o Sol estava sempre ausente. Sentia um tipo de angústia pela luz que faltava e sabia que por volta das 16 horas seria noite. É um alívio lembrar disso nas madrugadas brasileiras e ficar feliz, antevendo o céu azul e a claridade plena.

Essa lembranças não são pensamentos, são sensações. É como entrar numa máquina do tempo invisível e, em segundos, fazer uma viagem para algum momento da vida. Um resgate instantâneo, cheio de sabor e cheiros: o gosto dos bolinhos de chuva, a visão dos amores-perfeitos, o som da 5º de Beethoven, tudo impregnado de história e de sentido.  

Pois na medida em que a vida avança vamos montando nosso próprio quebra-cabeça, constituído pelas experiências que escolhemos viver. Memórias espontâneas nos agraciam com esse vislumbre 

terça-feira, 20 de maio de 2014

MAGIA, MAGIA, MAGIA...


Ela chegou em casa depois de um longo dia de trabalho. Pendurou o casaco, trocou de sapato, sentou. Olhou para as paredes da sala precisando de pintura, para o sofá já não tão novo e calculou mentalmente quanto tempo ainda gastaria para fazer tudo que deveria ser feito antes de poder finalmente ler, ver um filme, esticar as pernas. Pensou na comida e nas crianças, nas plantas e no cachorro, no telefonema para a mãe e para a amiga, nas camisas do marido... Pensou que estava precisando se cuidar, fazer ginástica, emagrecer, perfumar os armários...
Então, de repente percebeu que na sua lista não havia nada seu. Não havia lugar para dançar, para tocar, para pintar. Não havia tempo para rir, para cantar. E percebeu que na sua vida programada de rotina havia se esquecido de incluir a magia...
Sentou de pernas esticadas no tapete da sala e deixou a memória fazer seu papel. Primeiro devagar, depois aceleradamente imagens foram voltando: a visão perfeita da lateral de Notre Dame de Paris, o professor parando a aula para dizer que a achava linda, as flores deixadas anonimamente na portaria, as risadas insanas com as amigas. o bolo de aniversário surpresa, os presentes que não esperava. Foram tantos. Tantas vezes a vida simplesmente lhe abrira as portas e convidara a passar...
Quem disse que agora tinha que ser diferente? Por que se tornara tão responsável a ponto de não perceber a presença do imprevisível que se esconde nas dobras de cada dia, como uma possibilidade? Será que crescer, se tornar adulta é abandonar o sonho, o olhar risonho diante do que nos aguarda?
"Se for assim, muito obrigada, Prefiro mudar de rumo."
Ouviu a voz dos filhos chegando da escola. Não se levantou do chão. Sorrindo declarou que o fariam pique-nique  na própria sala. Risos e vivas, seguidos de agitação e confusão de crianças reunindo guloseimas. Espanto do marido, alegria dos bichos. Música.
Em meio ao alegre e diferente ficou um alerta interno e um pedido ao universo: que eu me lembre sempre que a Vida pode ser Mais, muito mais Especial...

domingo, 4 de maio de 2014

Curiosamente...


Em algum lugar da mente está impresso que as coisas têm hora e lugar para acontecer. Geralmente é assim. Mas nem sempre. 
Eu não aprendi a andar de bicicleta quando criança. Meu pai tinha um feroz instinto de preservação  e achava que o simples fato de saber pedalar me tornaria a candidata preferencial a um atropelamento. Não adiantava argumentar. Era não e pronto. Minha irmã teve mais sorte. Aprendeu a pedalar no quintal da casa de uma amiga. Como isso não se esquece, ela faz parte da grande quantidade de seres que sabem se equilibrar sobre duas rodas.  
Eu já dava aulas na Aliança Francesa quando fui me dando conta que havia outros como eu. Quando eu comentava, em sala de aula, que não sabia "faire du vélo" havia sempre uma pequena comoção, seguida de risos e comentários. Fazia parte do meu show, mas através dele fui descobrindo outros não-ciclistas tímidos que iam se mostrando aos poucos. Mas quem disse que era uma caso perdido?
Anos mais tarde, aproveitei o "Dia das Mães" para escolher um presente incomum: uma bicicleta feminina, lilás, lindinha, devidamente equipada com rodinhas! Isso mesmo, com rodinhas. O vendedor não podia crer e argumentou que eu não precisaria delas. Fui irredutível. Quero aprender e quero fazê-lo do meu jeito. 
Hoje, curiosamente, enquanto meu marido e filho de 14 anos jogam bola, posso dar voltas e mais voltas na minha bike. Tudo na sequência de tempo "errada", de um jeito diferente. E curiosamente, está tudo certo. Quem disse que as coisas podem ser feitas de um só jeito?

quarta-feira, 2 de abril de 2014

A lista de desejos


O menino pegou a caneta e escreveu:
Quero ficar mais alto que meu irmão.
Quero comer batata frita todos os dias.
Quero ter um cachorro de orelhas caídas.
Colou na porta do armário. Sua mãe era uma praticante entusiasta do poder do pensamento positivo e ele aprendia com elas algumas “técnicas”. Por que não tentar também?
Afinal, seus desejos não eram impossíveis. Para se distrair, resolveu classificá-los mentalmente, por grau de dificuldade. Aí, se atrapalhou: qual dos três seria o mais complicado?
Depois de pensar bastante, decidiu: quanto mais dependesse dele, mais fácil seria.
Assim, o campeão da moleza foi a batata frita: ele podia comprá-la, comer na casa de um amigo e até convencer a avó a fazer. Dependia de um pouco de esforço, mas nada demais.
Já o cachorro... Teria que insistir muito, juntar algum dinheiro para ajudar a comprar e se tornar responsável por ele. Mas, cachorro era um desejo nobre. Quem não gostaria de um peludo para dividir as brincadeiras? Quem conseguiria resistir ao seu olhar carente?
O ultimo desejo era tão difícil que se tornava fácil. Dependia mais da natureza do que dele mesmo. Assim, formulou-o com convicção, confiando que alguma parte do universo o estava ouvindo e que, portanto se encarregaria de realizá-lo. Ele se tornaria um garoto alto e poderoso. E não precisaria fazer nada.  Estava tudo certo. Uma vez a classificação feita, saiu correndo para começar a campanha “pró cachorro”! Feliz.



segunda-feira, 24 de março de 2014




DÚVIDAS




Mais um dia em uma multidão de dias, todos iguais.
Há tempos, eu tive um sonho, mas acabei esquecendo dele. O que era mesmo que eu desejava fazer?
As conversas, os conselhos, as rotinas me moldaram e fui ficando parecido. Parecido com meu pai, com meus irmãos, com os amigos deles... Levanto cedo e trabalho, me canso durante o dia e me distraio bebendo à noite. E claro, há as mulheres...
É uma vida comum, uma vida qualquer, mas que mal há nisso?

E no entanto, às vezes, quando não estou fazendo nada, uma vozinha cochicha na minha cabeça coisas que não quero ouvir ou não posso entender.
Fala do outro que eu poderia ter sido. Um outro que teria deixado a vila e ido para a cidade. Teria estudado. Teria visitados lugares novos no mundo. Teria amado e corrido riscos. Teria seguido um caminho só seu, único, diferente e feito seu próprio nome.
E essa voz vai falando, bem baixinho e eu vou ficando triste. A bebida vai ficando mais amarga e eu, mais só. Então, com desânimo, me pergunto uma vez mais:
_  Qual era mesmo o meu sonho?

quarta-feira, 19 de março de 2014

Multidão


Neste lugar há tantos seres.
Há um otimista cheio de projetos e um sabotador que se nega a ajudar.
Há idéias que fervilham e clamor por segurança.
O desejo de inovar e uma estranha indiferença.
A  acomodação da rotina e o impacto do ritual.
E esse falar constante que paralisa qualquer ação
Buscando o silencio eu me pergunto afinal

O que fazer com todas as vozes que moram dentro de mim...

sábado, 8 de março de 2014

 Esconde-esconde


Aqui estou aqui parada, me perguntando o que fazer diante das imensas possibilidades oferecidas por algumas horas de tempo livre. Ontem, às onze horas da noite a programação parecia perfeita e o tempo curto. Tantas coisas a fazer... Arrumar as jardineiras, desenhar, pintar, escrever, doar as roupas, ir ao cabeleireiro...  A lista é infinita. 
Mas, diante do breve momento sem obrigações, meu cérebro de se esvazia e me deixa sem ação. Vejo-me parada diante do banal. Nada parece atraente. Pendurar-me nas jardineiras, sujando as unhas encontrando toda sorte de insetos? Hoje, não. Afinal, está frio, vai chover... Ir ao cabeleireiro? E deixar de aproveitar um raro momento de paz e silêncio? Não faz sentido! E o que dizer da enorme bagunça que preciso fazer para pintar um quadro... 
Então, em algum lugar da alma se instala a sensação dilacerada de promessa não cumprida. Pois, as piores traições são as que fazemos a nós mesmos. Não há nada mais cruel do que se determinar a parar de comer doce e sucumbir diante do primeiro tablete de chocolate. Do que se dizer com (pretensa) convicção que vai ligar para as amigas e para aquela tia solitária “amanhã” e de não ter a iniciativa de pegar o telefone. De estipular o dia de retomar a ginástica e simplesmente, fazer de conta que esqueceu. Não. Não há expectadores, ninguém julgando ou olhando, mas o meu próprio ser se sente enfraquecido.
De alguma forma, esqueço o que havia me dito e as pequenas boas resoluções fogem do cérebro e se agregam em algum lugar, brincando de esconde-esconde. Não desaparecem. Estão lá, zumbindo como um enxame de abelhas mal humoradas numa linguagem incompreensível. Uma “semi-amnésia” perversa que me lembra o tempo todo que estou em falta com alguma coisa já dita ou pensada. 
Planejar e não cumprir é esvaziar a sua capacidade de criar a realidade. Se pensei, decidi, que eu faça! Ou então, o melhor é agir livremente de acordo com a vontade do momento.